Diálogos,  História,  Resenha

Um mergulho literário em período tormentoso

Obra de Ben Lerner reacende a memória do atentado de 2004 na movimentada Estação de Atocha em Madri

Por Cristiane Garcia Teixeira

Ao visitar o espaço da Editora Juriti – em Santa Rosa do Sul, no extremo sul do estado de Santa Catarina – deparei-me com a estante Livros Livres e algo de mágico aconteceu: um livro me escolheu. Peguei-o emprestado para ler, porque mesmo com as leituras da tese e de projetos, é a literatura, por vezes, que tem me ajudado a manter a sanidade. Mais que isso, é com ela que consigo enxergar a sociedade, o mundo e a mim mesma de um jeito que só ela permite.

O livro que a mim escolheu tem como título Estação Atocha e seu autor, o poeta norte americano Ben Lerner, faz dessa obra sua estreia na escrita de romances. Foi publicado pela primeira vez em 2011, mas ganhou, em fevereiro do ano passado, uma edição linda e exclusiva aos assinantes da TAG – Experiências Literárias, em parceria com a editora Rádio Londres. É um livro narrado em primeira pessoa pela personagem Adam Gordon, assim como o autor um poeta norte-americano, que ganha uma prestigiada bolsa de estudos em uma universidade de Madri. O seu projeto consiste em finalizar um livro de poesias sobre a literatura produzida durante a Guerra Civil Espanhola, mas o vemos envolvido com a Madri do início do século XXI.

Gordon, então, presencia os conflitos e acontecimentos do período eleitoral espanhol de 2004, o atentado terrorista na Estação de Atocha – a mais importante da rede ferroviária espanhola – e um governo que se valia desse massacre como manipulação eleitoral. Experimenta também, embora muitas vezes alheio à experiência, as diversas manifestações nas ruas da capital espanhola que mudaram os rumos daquela eleição. Explico: diante de todo esse cenário, das manifestações nas ruas, dos encontros e debates entre os manifestantes, o que faz a personagem Adam Gordon? Vai para seu apartamento e acessa a internet para ler e se inteirar sobre o atentado e as eleições a partir do noticiado pelo jornal New York Times.

O livro é muito bom! De maneira resumida, ao lermos, podemos refletir sobre diversos assuntos: a passividade de jovens adultos em relação a assuntos/ações políticas; a insegurança, ansiedade e síndrome do impostor no meio acadêmico; a experiência de ser estrangeiro fora, em outro país, mas também dentro de si mesmo; a crítica do autor à política de seu país de origem; a capacidade que têm alguns romances em absorver poemas, músicas, obras artísticas… e como existem textos que são uma experiência artística profunda.

A escrita em primeira pessoa constrói um laço de intimidade com o leitor e leitora, por isso a leitura é intensa, cheia de significados, uma experiência sensorial, uma dança que subentende acolhimento e repulsa.

Partindo da minha experiência enquanto acadêmica, a identificação com o protagonista, Adam Gordon, é inevitável. E, por consequência, a crítica de Ben Lerner com relação aos jovens adultos pertencentes a esse meio acadêmico torna-se perceptível. Gordon vive a insegurança de ser uma fraude, acredita ter conquistado a prestigiada bolsa de estudos por sorte e, por isso, a ansiedade gerada pelo medo de ser “descoberto” é uma constante. Gordon parece definir-se pela impressão do que lhe é alheio, o que outro pensa ou pode pensar a seu respeito. Vaidade, narcisismo, mentiras, a intensidade que é também permeada pela prostração e algumas pinceladas de superficialidade, bem como uma fuga incessante do sentir recorrendo ao entorpecimento por remédios e drogas, tornam possível ao protagonista a complexidade humana.

Narrativa multifacetada marca o primeiro romance de Ben Lerner Imagem: Editora Rádio Londres/Divulgação

Em alguns momentos da leitura me perguntava se Gordon poderia mesmo ser um poeta, já em outros me convencia que só um poeta agiria daquela maneira. Com relação ao autor, Ben Lerner, não há dúvida sobre sua formação na poesia. A escrita em primeira pessoa constrói um laço de intimidade com o leitor e leitora, por isso a leitura é intensa, cheia de significados, uma experiência sensorial, uma dança que subentende acolhimento e repulsa. A última vez que me senti assim enquanto lia foi com Clarice Lispector, em A Paixão segundo G.H.

Em uma entrevista concedida à TAG e transformada em posfácio na revista sobre o autor e obra que acompanha o kit “curadoria”, Ben Lerner falou sobre a similaridade de sua vida e a do protagonista do livro, Adam; da construção do enredo e personagens, seu mais recente trabalho The Topeka school e também sobre seus escritores e escritoras latino-americanas favoritos. Alguns dos primeiros livros que amou são do nosso bruxo, Machado de Assis. Mais um bom motivo para conhecer o seu romance de estreia. Afinal, antes mesmo dessa revelação, a leitura de Estação Atocha apresenta-se como um convite a “uma profunda experiência artística”. E é.

¡Una buena lectura y un gran viaje!

MANIPULAÇÃO DO EVENTO TRÁGICO ENVOLVEU A AGÊNCIA DE NOTÍCIAS EFE

Ramalhete de flores na Estação de Atocha, uma das homenagens às vítimas do atentado Imagem: MaGiKz ReApZ/desmotivaciones.es

A traumática manhã de 11 de março de 2004 é relembrada todos os anos na Espanha, com cerimônias oficiais em homenagem às vítimas do atentado na Estação de Atocha. Ativistas islâmicos agiram, de forma extremamente violenta, como forma de protesto ao apoio do governo do primeiro-ministro do Partido Popular (PP), José María Aznar, à invasão norte-americana no Iraque desencadeada no ano anterior. Foram detonadas 13 bombas em quatro trens que chegavam à Madri, matando 192 pessoas e ferindo mais de 2 mil. Perpetrado três dias antes das eleições, o chamado 11-M foi manipulado por Aznar, que atribuiu o ataque a membros da organização armada basca Euskadi Ta Askatasuna (ETA) enquanto as informações policiais direcionavam para o que, de fato, havia ocorrido – a reação extremista islâmica ao posicionamento pró-Estados Unidos do governo espanhol.

Em comunicado divulgado alguns dias depois, uma comissão de funcionários da agência noticiosa EFE anunciou a decisão, tomada por unanimidade por todos os trabalhadores, de exigir a destituição imediata do diretor da empresa estatal, Miguel Platón, devido ao “regime de censura e manipulação imposto após os atentados de 11 de março”. Para os empregados da agência, essas medidas levaram à ocultação de dados relevantes da investigação policial. No mesmo documento, a comissão denunciou que a EFE soube na própria manhã dos atentados em Madrid da existência de indícios que apontavam para a pista árabe, mas prevaleceu a censura e o próprio Miguel Platón redigiu as notícias que responsabilizavam o ETA pelo massacre, já que “os jornalistas da editoria Nacional se negaram a fazê-las.” O esforço do governo foi grande: o próprio primeiro-ministro Aznar, telefonou naquele mesmo dia 11 a diretores de redação de meios de comunicação de Madrid e Barcelona insistindo que a responsabilidade era “sem dúvida” do grupo basco. Mas tanto empenho não sensibilizou os eleitores e eleitoras do país, que deram o troco nas urnas pela tosca manipulação. O primeiro-ministro não conseguiu fazer seu sucessor – Mariano Rajoy, do PP – e assumiu a presidência do governo (como se denomina o cargo na Espanha) o então líder oposicionista José Luis Zapatero, do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE).

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