História,  Jornalismo

A gênese jornalística do Cone Sul

Circunstâncias históricas conduziram Buenos Aires ao pioneirismo das publicações impressas na Bacia do Rio da Prata

Por Mauro César Silveira

Bem antes de ser autorizada a primeira tipografia no Brasil, com a vinda da família real em 1808 e a implantação da Imprensa Régia, as regiões colonizadas pela Espanha conheceram os meios de impressão que permitiriam a ascensão do jornalismo. Já na terceira década do século XVI, a partir de 1532, com quase três séculos de precedência, a atual cidade do México recebeu equipamentos gráficos transportados desde o continente europeu. Não por acaso, os pioneiros periódicos das Américas Central e do Sul surgiriam nos espaços geográficos colonizados pelos espanhóis. Até pouco tempo, duas publicações – a Gazeta do México, que surgiu em 1722 no Vice-Reinado da Nova Espanha, e a Gazeta de Lima, lançada em 1744 no Vice-Reinado do Peru, eram consideradas, respectivamente, os marcos iniciais do jornalismo na América Latina e na América do Sul. Mas quatro anos atrás, em 2017, uma pesquisa desenvolvida durante uma década pelos professores Paul Firbas, da Stony Brook University, de Nova Iorque, e José Rodríguez Garrido, da Pontificia Universidad Católica del Perú, trouxe à tona provavelmente o primeiro jornal das Américas, o Diario de noticias sobresalientes en Lima y las Noticias de Europa, que circulou entre 1700 e 1711 na capital peruana, suplantando em primazia também o Boston Newsletter, de 1704.

No Brasil, as duas iniciativas conhecidas que desafiaram a proibição das autoridades portuguesas contra atividades gráficas foram duramente reprimidas.

Seria natural, portanto, que o precursor do jornalismo nos países do Cone Sul despontasse em algum território de língua espanhola. Assim, no dia primeiro de abril de 1801, apareceu em Buenos Aires o Telégrafo Mercantil, a pioneira publicação da Bacia do Prata e do sul do continente americano. Nem poderia ser diferente. No Brasil, as duas iniciativas conhecidas que desafiaram a proibição das autoridades portuguesas contra atividades gráficas foram duramente reprimidas. Em 1706, no Recife, um audacioso e sinistro negociante instalou um prelo com o objetivo de imprimir letras de câmbio e orações. A reação foi imediata: uma Carta Régia determinou o fechamento do local e o sequestro de todos os bens, sobretudo o equipamento de impressão. Quarenta anos depois, foi a vez do português Antonio Isidoro da Fonseca, que fugiu da Inquisição e tentou montar clandestinamente uma oficina gráfica no Rio de Janeiro. Tão logo os representantes da Coroa lusitana tiveram conhecimento disso, alguns meses depois, agiram com rigor: todo o material foi incinerado e Fonseca teve seus bens igualmente sequestrados, além de ser deportado para Lisboa.

Primeira edição do Telégrafo Mercantil circulou em 1º de abril de 1801

Mesmo que a ação colonizadora fosse distinta entre as duas monarquias da Península Ibérica, o torrão meridional espanhol da América do Sul demorou a contar com um jornal impresso. O protagonismo da capital do Vice-Reinado do Peru ofuscava as demais regiões e retardava o desenvolvimento de muitas áreas, como a impressa. Tudo mudaria a partir de 1776, com a criação do Vice-Reinado do Rio da Prata, sediado em Buenos Aires, dentro das estratégias reformistas do Iluminismo espanhol conduzidas pelo rei Carlos III. Essa decisão de dividir a gigantesca área territorial administrada desde Lima deve-se, sobretudo, aos efeitos da chamada guerra guaranítica, entre 1753 e 1756, que terminou com a vitória das forças coligadas de Portugal e Espanha e determinaria, mais tarde, o fim da atuação dos jesuítas no continente. A expulsão dos religiosos, decretada por Carlos III em 1767 – mas cumprida apenas no ano seguinte -, sob a acusação de terem promovido a resistência indígena e de conspirar contra a monarquia para instalar uma república independente, tornaria as colônias mais vulneráveis ao avanço português ou à ação de países como a Inglaterra.

A manuscrita Gazeta de Buenos Aires, lançada em 1764, não durou muito, desaparecendo no ano seguinte, mas contribuiu para sedimentar a necessidade de um periódico na região.

A mudança da fisionomia da cidade portenha foi considerável. No final do século anterior, Buenos Aires era um vilarejo de apenas 2 mil pessoas. O número subiu para aproximadamente 10 mil em 1740 e chegou a 23 mil quando o Vice-Reinado do Rio da Prata foi criado. Alguns anos depois, durante o mandato do Vice-Rei Juan José de Vértiz y Salcedo, entre 1778 e 1783, o crescimento rápido da cidade impressionava: o primeiro recenseamento realizado naquele período computou um total de 37.679 habitantes. Buenos Aires passava a desempenhar um papel decisivo na defesa dos interesses econômicos e políticos espanhóis na região. Como consequência natural, a cidade acolheria as primeiras experiências periódicas impressas do Prata, aproveitando a efervescência já notada na década de 1760, quando surgira o primeiro manuscrito jornalístico da região, a Gazeta de Buenos Aires.

Edição da manuscrita Gazeta de Buenos Aires em 25 de setembro de 1764

Depois dessa publicação escrita à mão pelo comerciante francês Jean Baptiste de La Salle – ou Juan Bautista de La Salle, a versão espanhola do seu nome que ele fez questão de adotar -, o interesse por informações locais  e do exterior aumentou ainda mais na capital do Vice-Reinado do Prata. A manuscrita Gazeta de Buenos Aires, lançada em 1764, não durou muito, desaparecendo no ano seguinte, mas contribuiu para sedimentar a necessidade de um periódico na região. Percebendo isso, o Vice-Rei Salcedo determinou, em 1780, o transporte para Buenos Aires dos equipamentos gráficos que os jesuítas haviam instalado na Universidade Nacional de Córdoba no início daquele século. Mesmo assim, tardaria ainda mais de duas décadas até o surgimento do primeiro jornal na cidade. Antes do lançamento do Telégrafo Mercantil, rural, político, económico e historiógrafo del Río de la Plata, em 1801, o material impresso ficaria praticamente restrito a documentos governamentais e textos de doutrina religiosa. A chamada Real Imprenta Niños Expósitos esteve a maior parte do tempo a serviço do clero, reproduziu folhas soltas com notas oficiais e, aos poucos, deixou escapar pequenas obras poéticas autorizadas pelas autoridades, aguçando ainda mais a curiosidade das pessoas.

“Vista de Buenos Aires”: pintura a óleo do escocês Richard Adams do início do século XIX Reprodução: Museo Nacional de Bellas Artes/Argentina

O visível interesse da comunidade bonaerense por um jornal chamou a atenção do Conde Santiago Luis Enrique de Liniers – nobre francês que viajou para a América do Sul quando eclodiu o movimento revolucionário em seu país e aportou na cidade em 1790 – e ele tentou, sem sucesso, o lançamento de um periódico com o mesmo nome do caderno manuscrito de La Salle, Gazeta de Buenos Aires. Por motivos desconhecidos, o processo de autorização do jornal acabaria adormecendo nos arquivos do Vice-Reinado.

Algumas publicações esporádicas circularam, naquela última década do século XVIII, até o lançamento da primeira edição do Telégrafo Mercantil. Além das circunstâncias históricas que citamos anteriormente, o pioneiro jornal do Cone Sul também deve sua existência ao espanhol Francisco Antonio Cabello y Mesa, seu perseverante editor. Como esse advogado e militar lidou com o poder político e eclesiástico, em secular congraçamento na península ibérica, é o que veremos na sequência deste artigo. Vamos nos reportar à breve história do primeiro periódico da Bacia do Rio da Prata – de como ele nasceu, cresceu e feneceu, no período de um ano e meio, de abril de 1801 a outubro de 1802.

Referências

DE MARCO, Miguel Ángel. Historia del periodismo argentino: desde los orígenes hasta el centenario de MayoBuenos Aires: Editorial de la Universidad Católica Argentina, 2006.

SÁNCHEZ ZINNY, Fernando. El periodismo en el virreinato del Río de La Plata. Buenos Aires: Academia Nacional de Periodismo, 2008.

SILVEIRA, Mauro César. Um pecado original: os primórdios do jornalismo na Bacia do Rio da Prata. Florianópolis: Insular, 2014.

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