Jornalismo

O lento cortejo do último jornal de papel

Pandemia acelera o processo de transição do jornalismo impresso para um futuro 100% digital

Por Mauro César Silveira

As imagens vão desvanecendo, pouco a pouco, através de um canto triste, melancólico. “A tradicional cena caseira do jornal de domingo, símbolo da leitura familiar, vai ficar no imaginário coletivo”, escreveu, com tintas fortemente nostálgicas, o leitor espanhol José Maria Torras Coll ao diretor do jornal El País no início deste mês, em 7 de março de 2021. “Seremos órfãos de papel”, complementou, antevendo também o desaparecimento, na paisagem urbana, das bancas de venda das publicações impressas. A carta é uma ode ao ocaso, cada dia mais próximo, do diário noticioso de papel: “Os leitores analógicos, ávidos por acudir a uma banca de jornal, terão que se conformar em visitar o espaço digital sem tocar papel, sem poder desfrutar da insubstituível e deliciosa liturgia da passar a mão entre uma página e outra. A muitos nos invade a tristeza de nos ver despojados de tão sadio e inveterado costume, adquirido, arraigado e transmitido na passagem de uma geração à outra”.

É um fim anunciado há um bom tempo, mas que se tornou uma notícia mais frequente nos primeiros anos deste novo milênio. Diante do aumento crescente do número de funestas previsões, o jornalista brasileiro Ricardo Noblat, no livro A arte de fazer um jornal diário, lançado em 2002 pela editora Contexto, de São Paulo, se mantinha inabalável: “O atestado de óbito dos jornais diários foi assinado e lavrado em cartório pelo menos quatro vezes no século passado. A primeira vez, quando se inventou o rádio; a segunda, quando a televisão entrou no ar; a terceira, quando surgiu a internet; e a última, quando a revolução digital juntou em um único sistema o que antes existia em separado – a escrita, o som e a imagem”.

“Eu ficaria muito surpreso se o jornal continuasse a ser impresso daqui a 20 anos”. Mark Thompson, ex-CEO e ex-presidente da New York Times Company, em agosto de 2020

Poucos anos depois, o reconhecido professor Philip Meyer, da Universidade da Carolina do Norte, refletiu sobre o naufrágio do modelo de negócios das edições impressas e ofereceu uma data precisa para a circulação do último jornal em papel: abril de 2043. Mas a obra Os jornais podem desaparecer?, lançada no início de 2007 no Brasil também pela Contexto, não era a visão apocalíptica de quem dissecou a indústria da informação frente a profundas adversidades. Meyer pregava, com fundamentação, que a única saída para retardar esse processo de extinção seria recuperar os valores mais caros ao bom jornalismo, associando o trabalho qualificado, com rigor ético, ao sucesso empresarial e a retomada da credibilidade.

Previsão de Philip Meyer em 2007: último jornal circulará dentro de 22 anos

O tempo passou, as redes sociais adquiriram notável protagonismo e o negócio jornalístico impresso seguiu afundando. Em junho do ano passado, em agudo cenário pandêmico, que agravou ainda mais a crise do setor, o sempre aguardado relatório do Instituto Reuters (Reuters Institute for the Study of Journalism), vinculado à Universidade de Oxford, informou que a grave situação sanitária mundial está acelerando, irreversivelmente, a transição para um futuro jornalístico 100% digital. Alguns indicadores dos últimos anos chamam a atenção: de 2013 a 2020, o consumo de notícias por meios impressos caiu de 50% para 23%, enquanto por meio de redes sociais cresceu de 47% para 67%. Dois meses depois, o então CEO e presidente da New York Times Company, Mark Thompson, principal responsável por levar o jornal estadunidense a conquistar 5 milhões de assinaturas exclusivamente digitais, não escondeu sua opinião sobre o futuro do impresso, mesmo levando em conta que o New York Times tenha atualmente uma circulação em papel que gira em torno de 900 mil exemplares diários: “Acredito que o Times será definitivamente impresso por mais 10 anos e possivelmente mais 15 anos, talvez até um pouco mais do que isso, mas eu ficaria muito surpreso se fosse impresso em 20 anos”.

“Por favor, não me condenem a uma tela digital. Não me roubem o prazer da leitura pausada. Não me tornem um órfão de papel”. Juan Carlos Machuca, leitor do El País em Londres

Os indícios dessa predição marcam o início de 2021 na Espanha. A manifestação do leitor José Maria Torras Coll ocorreu após algumas medidas adotadas pelo Grupo PRISA – o conglomerado de mídia que edita o El País – que geraram a reação de muitos leitores do jornal. Nessa reengenharia empresarial, acabaram, no mês passado, as revistas Retina (sobre transformação digital e tecnologia) e Buena Vida (sobre saúde e bem estar), que circulavam uma vez ao mês nas edições de sábado do periódico. Mais: desde 16 de fevereiro, depois de um período de quatro décadas, já não se encontra a edição impressa do maior jornal espanhol nas bancas das capitais europeias. O grupo empresarial considerou inviável a manutenção da distribuição em papel no continente: as vendas em banca despencaram 90% em 10 anos (circulavam 11 mil exemplares em 2011) e os custos se tornaram insustentáveis.

A elegia coletiva dos leitores espanhóis congestionou a caixa de correspondência do ombudsman (el defensor del lector) do jornal, Carlos Yárnoz, que se viu obrigado a divulgar alguns lamentos na edição de 28 de fevereiro. O português Vitor Almeida, de 60 anos, 30 deles lendo o El País, expressou sua tristeza com um apelo: “Distribuam pelo menos a edição de domingo. É uma forma de promover a língua e a cultura espanholas e de responder aos anseios de leitores ávidos pelo bom jornalismo”. De Londres, Juan Carlos Machuca mostrava outra consequência da decisão administrativa da empresa: “Nestes 21 anos como imigrante, ler vosso jornal me fazia sentir perto da Espanha. Era conhecido pelos meus amigos ingleses como ‘the spanish man always with El País’”. E concluía, também suplicando: “Por favor, não me condenem a uma tela digital. Não me roubem o prazer da leitura pausada. Não me tornem um órfão de papel”.

“Está chegando o fim do papel?” Carlos Yárnoz, ombudsman do El País

Cumprindo sua função de ouvidor dos leitores e das leitoras, Carlos Yárnoz buscou explicações com a direção do jornal. Mónica Ceberio, a diretora adjunta, alegou que as medidas eram “dolorosas, mas necessárias”. Custos altos e vendas baixas não deixavam outra opção: “Para poder manter sua independência e sua sobrevivência um jornal tem que ser sustentável. Nosso foco agora está posto no modelo de assinaturas da edição digital e em dirigir nossos recursos para fazer um jornalismo cada vez mais relevante”.

Livro clássico de Balzac: uma reflexão ética sobre o jornalismo impresso diário em ascensão no século XIX

No último parágrafo da sua coluna, o ombudsman se pergunta: “Está chegando o fim do papel?”. Sem apresentar uma resposta, sua esperança é que, ao menos, o jornal impresso tenha uma sobrevida, na lenta agonia rumo ao seu fim. Afinal, apesar de tudo, os recursos obtidos pelos impressos espanhóis (entre assinaturas, venda em banca e anúncios) ainda representam um valor significativo, nada desprezível, de 321 milhões de euros anuais (valores de 2020), quase a metade do total, um pouco menos que as edições digitais – 334 milhões de euros no mesmo período. Mas a queda continua e tudo indica que as imagens, cada vez mais raras, de leituras de jornais nas casas, nas praças, nos ônibus, nos trens, bem como das fervilhantes bancas de outrora, estarão confinadas, definitivamente, às páginas da história.

Já está distante no tempo o ato solene, quase religioso, no cotidiano das pessoas, da leitura do jornal, descrito pelo filósofo alemão Hegel, nas primeiras décadas do século XIX, como a “oração matinal do homem moderno”. Agora, as preces são muitas, incontáveis, e nem tem hora definida para o ato litúrgico acontecer: a informação chega o tempo inteiro, nervosamente, de dia e de noite, de todas as direções possíveis, em todos os locais, da fila do banco à sala de espera do dentista, da cama à cozinha. Tudo por obra dos onipresentes meios digitais. Se ainda fosse vivo, seguramente, o francês Honoré de Balzac deixaria de fora da sua monumental obra A Comédia Humana o ainda excelente livro Ilusões Perdidas. Escrito entre 1835 e 1843, esse volume debruçava-se sobre a ameaça do jornalismo em ascensão à hegemonia da literatura como forma de representação da realidade. O olhar de Balzac sobre os periódicos hoje, com certeza, seria bem outro. No rumo oposto ao daquela época, quem sabe esboçaria um réquiem. Afinal, os livros impressos, literários ou não, seguem mais vivos do que nunca, firmes, imperturbáveis. Mas aquele temido jornal diário em papel resiste, estoicamente, com muitas dificuldades, a duras penas. Até quando?

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