Sociedade da mentira
A história da entidade que falseava a verdade para desmoralizar os falaciosos no Rio de Janeiro do século XIX
Por Cristiane Garcia Teixeira
No dia 28 de janeiro de 1853 os leitores e leitoras, assinantes ou compradores de edições avulsas do jornal de variedades Marmota Fluminense, ao manusearem o periódico, depararam-se com a ata de uma das reuniões da agremiação intitulada Sociedade Petalógica. Foi a primeira vez que algo desse teor havia sido publicado no jornal, que era impresso na tipografia e livraria de Francisco de Paula Brito, um homem negro, editor e tipógrafo “da Casa Imperial” cujo estabelecimento era um ponto de encontro de literatos, políticos, estudantes e artistas, entre outros. A livraria e tipografia estava fixada “em um dos lugares mais bonitos da região”: Praça da Constituição, n. 64, onde hoje é a Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro.
Com relação à primeira ata da associação, foi publicada na primeira página da Marmota Fluminense, o que demonstrou a importância do tema, pelo lugar de honra que ocupou. Tornou-se constante a partir de então, quando os membros da agremiação, aos poucos, passaram a contar ao público leitor quais eram os objetivos e o funcionamento da Petalógica.
Segundo uma das publicações da entidade, apresentada na edição da Marmota Fluminense de 5 de julho de 1853, havia na Corte “sujeitos […] com créditos de Epaminondas Tebano, que nem zombando mentiam, mas eram uns verdadeiros mentirosos”. Eram a esses mentirosos, que se passavam por “dizedores de verdades”, que os iniciados na também chamada Sociedade de Petalogia pretendiam ensinar a mentir, mas ao modo da Petalógica: inventando mentiras maiores ainda para que os mesmos as compartilhassem como sendo verdades e, assim, fossem desmascarados pelos iniciados da agremiação. “E pensais, leitores, que isto não foi útil?” – escrevia o presidente da agremiação em uma das atas – “Desenganados assim os petalógicos, não tiveram outro remédio senão se corrigir eles mesmos; porque cada coisa que diziam, por mais documentada que fosse, era objeto de hilaridade geral”.
Uma peta, uma mentira!
Em dicionário contemporâneo à agremiação, uma peta, em seu sentido figurado, significava uma mentira e essa foi a acepção empregada no título da Petalógica. Pretendeu, através da invertida lógica de “contrariar aos mentirosos, mentindo-lhes”, constranger e envergonhar aqueles que tomavam e apregoavam como verdades tudo o que ouviam. Pretendeu também que os mesmos mentirosos, logo após que obtivessem o conhecimento de que a notícia que tomavam e repassavam como verdadeira constituía-se em uma notícia petalógica, ou seja, uma mentira, “se corressem de envergonhados e se corrigissem”, conforme outro texto da entidade, publicado na edição da Marmota Fluminense de 29 julho de 1859.
Um dos objetivos da disseminação do que os membros intitulavam de mentiras de espavento – as petas – era desmoralizar os mentirosos. Dessa maneira, os não iniciados na Sociedade ao repassar as mentiras que escutavam, como sendo verdades, perdiam a legitimação entre seus pares e a entidade. Esse processo parecia uma espécie de ridicularização do mentiroso, uma zombaria de indivíduos cujos comportamentos eram passíveis de censura. As petas funcionavam como estratégia para criticar e punir os mentirosos, mas também inconvenientes do Rio de Janeiro oitocentista.
Muitas vezes era o humor e o riso que distanciavam iniciados e não iniciados na agremiação. O riso que vinha logo após a peta ser proferida poderia ser o que diferenciava os capazes e incapazes de compreender e perceber a mentira. Essa questão pode ser ilustrada com uma passagem do livro de Gondin da Fonseca (1960, p. 102-103): “A palavra ‘petalógica’ vinha de peta, mentira, – mas naqueles dias românticos supunham-na derivada de ‘pétala’ os não iniciados que dela ouviam falar. João Caetano ria! As pétalas da Petalógica! Machado ria!”.
Sim, Machado de Assis, em sua juventude, foi um dos membros da associação. Joaquim Manuel de Macedo, o autor de A Moreninha também, e outros diversos literatos e políticos, como Eusébio de Queirós, por exemplo. As atas da Petalógica seguiam a mesma formatação dos Anais das Câmaras dos Deputados, publicados no Jornal do Comércio. Apresentavam um Sumário, a descrição do Expediente e a Ordem do Dia. No Expediente estavam as narrações das petas e a Ordem do Dia mostrava passo a passo os acontecimentos da reunião, que parecia funcionar da seguinte maneira: determinados associados pediam a palavra e narravam um acontecimento, logo depois discutiam sobre o fato narrado e era decidido se tratava ou não de uma mentira. Em outros momentos pareciam ter combinado entre si que ao aparecer na livraria e tipografia um possível mentiroso não iniciado na agremiação, inventariam uma mentira ainda mais absurda para que o mesmo a compartilhasse. Tudo era descrito na ordem da pilhéria e o riso rolava solto.
Como foi relatado na edição da Marmota Fluminense de 5 de julho de 1853: “Apenas se apresentava um desses Snrs. [não iniciado na Sociedade], e citava um fato que vira, ou que ouvira, um dos presentes [um iniciado], por combinação já feita, inventava uma mentira de outra ordem, mas mentira de espavento, e que era confirmada logo por dois ou três dos presentes [também iniciados], e com circunstâncias especiais. Saia dali o petalógico [não iniciado] e ia apregoando a obra como sua, de modo que, em poucas horas, corria a mentira com mais força do que o incêndio lavra em cavacos de pinho”.
A Sociedade Petalógica cessou suas reuniões nas primeiras décadas de 1860. Ainda em 1865 é possível encontrar textos na imprensa assinados por Machado de Assis descrevendo com saudades “a Petalógica de Paula Brito”. Lá iam todos para informar-se, ou desinformar-se, sobre os últimos acontecimentos parlamentares, as óperas italianas, os novos livros publicados, as últimas peças de Macedo ou Alencar, o estado da praça, os boatos… “Os petalógicos, espalhados por toda a superfície da cidade, lá iam, de lá saiam, apenas de passagem, colhendo e levando notícias, examinando boatos, farejando acontecimentos”, relembrava o autor de Dom Casmurro no texto Folhetim: Ao acaso, no Diário do Rio de Janeiro de 3 de janeiro de 1865. Mais de um século nos separa da Petalógica, mas a impressão que fica é que, como no século XIX, ainda hoje muitos homens e mulheres se “correriam de envergonhados” por compartilharem petas, ou seja, mentiras.
Referências
ASSIS, Machado de. Folhetim: Ao acaso. Diário do Rio de Janeiro, 3 jan. 1865.
FONSECA, Gondin da. Machado de Assis e o hipopótamo: uma revolução biográfica. São Paulo: Fulgor, 1960.
GODOI, Rodrigo Camargo de. Um editor no Império: Francisco de Paula Brito. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2016.
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario de lingua brasileira. Ouro Preto, Typographia de Silva, 1832. Disponível online aqui.
PETA ACIDENTAL NA COBERTURA BRASILEIRA DA COPA DO MUNDO DE 2014
Durante a realização da Copa do Mundo no Brasil em 2014, o site de jornalismo de humor Laranjas News, de Florianópolis, produziu uma peta involuntária. A falsa reportagem intitulada Após classificação da Argentina, Messi relembra verões em Canasvieiras foi interpretada como verdadeira na redação da revista Época. Com indisfarçável surpresa, os editores do Laranjas, Bruno Volpato e Tomás Petersen, viram a publicação semanal da editora Globo publicar uma declaração atribuída a Lionel Messi na entrevista ficcional com o craque argentino: “Depois da Copa, pretendo visitar novamente aquele pequeno e acolhedor balneário”, estampou a revista Época em 14 de julho de 2014, informando que o craque do Barcelona devia muito do seu sucesso às “partidas que jogou na areia do balneário de Canasvieiras, em Santa Catarina”.
Com atividade intensa no período entre 2007 e 2017, o Laranjas não pretende emplacar as mentiras como supostas verdades, como fazia a Sociedade Petalógica do século XIX. Os objetivos do portal catarinense são outros: “Laranjas é um site de humor com notícias falsas e nonsense, não devendo ser levado a sério sob hipótese alguma. Todos os posts do site são fictícios, seguindo uma tradição do jornalismo que reverencia grandes nomes como o Planeta Diário, a Casseta Popular, o Pasquim e o americano The Onion, por exemplo. Brincadeiras com reportagens e jornais fake também podem ser encontrados em seriados televisivos como o Monty Python Flying Circus, o Saturday Night Live e Hermes & Renato“. Mas havia uma característica do grupo liderado pelo editor e tipógrafo Francisco de Paula Brito que tem afinidade com o Laranjas: os membros da Sociedade Petalógica, incluindo Machado de Assis, também produziam textos irônicos e bem humorados. Se o objetivo maior da entidade era desmascarar mentirosos com falsas verdades e gerar críticas sociais, muitas abordagens eram cômicas e provocavam o riso.
VEJA TAMBÉM
Os mercadores de fake news no nervoso cenário contemporâneo têm um antecedente de quase dois séculos de história: o norte-americano Benjamin Henry Day, que lançou, aos 23 anos, o jornal de The Sun, em Nova Iorque, no longínquo 3 de setembro de 1833. Conheça a história do pioneiro editor das notícias falsas, publicada pelo Jornalismo & História em 13 de fevereiro de 2020, clicando aqui.
Um comentário
Carlos Wagner
Muito boa a matéria. E não estou mentindo.