História,  Jornalismo

A editora invisível

Considerada a primeira mulher jornalista da Bacia do Prata, Petrona Rosende lançou no anonimato, em 1830, a publicação feminista portenha La Aljaba

Por Mauro César Silveira

É uma ilustre desconhecida, sem nenhuma ponta de ironia. Uma arrojada e pioneira editora do Cone Sul. Bem antes, muito antes, mais de meio século antes do protagonismo conquistado pela notável repórter Nellie Bly, precursora do jornalismo investigativo no Estados Unidos no final do século XIX, Petrona Rosende criou, em Buenos Aires, no ano de 1830, um jornal feminista chamado La Aljaba. Um nome bem escolhido: o vocábulo espanhol de origem árabe significa o saco para carregar arco e flechas. O lema da publicação, logo abaixo da data, expressava sem meias palavras a proposta editorial: “Nos livraremos das injustiças dos homens somente quando não existirmos mais entre eles”.

Nascida em Montevidéu no ano de 1787, de tradicional família espanhola, ela se casou aos 25 anos com José Agustín Sierra, um ativo participante da Revolução Oriental. Depois da invasão luso-brasileira no Uruguai, em 1815, os dois seguiram para Buenos Aires, onde Petrona Rosende amadureceria a ideia de fundar a primeira publicação feminista da região platina. Dedicada ao “belo sexo argentino”, seu jornal tinha, entre outros objetivos, “contribuir para a formação intelectual da mulher, refletir sobre seu papel na sociedade e sua posição frente aos homens”. Com quatro páginas em cada uma das edições, impressas às terças e quintas-feiras, La Aljaba teve vida curta – como era comum naquela convulsa época na Argentina -, circulando de 16 de novembro de 1830 a 14 de janeiro de 1831, com um total de 18 números, incluindo o prospecto de apresentação do jornal – como era usual no século XIX -, impresso antes do lançamento. Além do seu perfil assumidamente feminista, a publicação abriu espaço para arte, religião e literatura, entre outros temas culturais. Mas sua mentora, precavidamente, diante do exacerbado machismo reinante, não assumiu sua identidade em nenhum número.

Poeta e jornalista, Petrona Rosende era uma redatora e editora anônima, mas extremamente corajosa. O cenário argentino era mesmo mais do que atribulado: transcorria o primeiro período de Juan Manuel de Rosas no comando da Província de Buenos Aires em meio a persistente guerra civil entre unitários e federalistas, e somente dois anos após o fuzilamento do governador anterior, igualmente do Partido Federal – o mesmo de Rosas – Manuel Dorrego. Mesmo assim, ela conseguiu viabilizar o lançamento de La Aljaba, mas passou a depender cada vez mais de assinaturas – ao valor de 3 pesos mensais; o exemplar era vendido a 3 reales – para cobrir os gastos de produção e impressão, apesar do visível apoio do governo. O jornal era impresso nos equipamentos gráficos do estado argentino.

Projeto de lei quer instituir o dia 16 de novembro como o Día Nacional de la Mujer Periodista, em homenagem à aparição do primeiro exemplar de La Aljaba

A luta pela igualdade de gênero transparecia em muitos textos, como neste trecho: “O homem civilizado não se crê que só ele é capaz de progredir nas ciências, ou nas artes; não duvida do talento das mulheres, sabe que esse talento associado ao contínuo estudo produz os mesmos efeitos, e tem os mesmos resultados, porque não há superioridade em um sexo nem inferioridade em outro, como acreditam os que se opõem a instrução do sexo feminino”. Ou, então, como nestas linhas: “De que as mulheres são parte essencial do universo é indubitavelmente demonstrado desde o princípio do mundo; pois sem elas este mesmo mundo já não seria senão habitado por outros animais, répteis e as aves”

Petrona Rosende? Há controvérsia: sim, é ela, para sites e publicações que reivindicam sua memória, mas na página da Biblioteca Nacional de Maestras y Maestros essa imagem é atribuída à educadora Rosario Vera Peñaloza

A invisibilidade de Petrona Rosende ainda é grande, mesmo na Argentina. Numa das obras acadêmicas mais abrangentes da história do jornalismo argentino, intitulada Historia del periodismo argentino: desde los orígenes hasta el Centenario de Mayo, de Miguel Ángel de Marco, lançada originalmente em 2006 pela Editorial de la Universidad Católica Argentina, há uma mera menção de duas linhas e meia ao La Aljaba, na página 139, com o período de circulação e o nome da jornalista responsável. Não surpreende, também, que a imagem divulgada em sites e impressos, inclusive ligados a universidades, que reivindicam o reconhecimento do seu pioneirismo no jornalismo e no feminismo, corrigindo uma injustiça histórica, talvez não seja a que corresponde à Petrona Rosende. A fotografia que tem sido publicada como sendo da jornalista está identificada pela Biblioteca Nacional de Maestras y Maestros – instituição pública do país – como sendo da célebre professora argentina do ensino infantil Rosario Vera Peñaloza, que viveu entre 1873 e 1950.

As densas névoas históricas que ainda encobrem o legado de Petrona Rosende podem começar a ser dissipadas se for aprovado pela Câmara dos Deputados da Argentina o projeto de lei apresentado na semana passada pela deputada representante da Província de Buenos Aires, María Rosa Martínez, do Kolina (Corriente para Liberación Nacional), instituindo o dia 16 de novembro como o Día Nacional de la Mujer Periodista, em homenagem à aparição do primeiro exemplar de La Aljaba em 1830. Uma perspectiva alentadora.

Boa parte das edições pode ser baixada, em alta resolução, no site da Biblioteca Digital Trapalanda, vinculada à Biblioteca Nacional Mariano Moreno. Acesse aqui.

COMPARTILHE

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *