História,  Reportagem

Legado revisitado

Nos 100 anos da Semana de Arte Moderna, ainda ecoam, sobre o cenário cultural brasileiro, tanto as limitações como as mais fortes influências do evento vanguardista

Por Lucas Ortiz

A maneira de se refletir sobre a arte nacional nunca mais foi a mesma depois de 1922. Entre os dias 13 e 17 de fevereiro daquele ano, ocorreu em São Paulo (SP), no Theatro Municipal, a Semana de Arte Moderna: manifestação artístico-cultural que marcou o início do Modernismo brasileiro, conforme registros oficiais. Na época, a rejeição da elite conservadora, regada de vaias, garantiu o “sucesso” do evento, colaborando com o objetivo dos organizadores: o de gerar escândalos.

“Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje, é uma aglomeração de “horrores”. Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida, se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado”. Trecho do discurso provocativo de abertura da Semana de Arte Moderna (1922), por Graça Aranha (1868–1931)

Um século mais tarde, ecos do pensamento modernista ainda ressoam nos museus, nos movimentos artísticos que vieram depois, nas mídias, nas universidades e nos livros didáticos. Enquanto isso, debates a respeito do “paulistocentrismo”, da “modernistolatria” e do “eruditismo” sugerem uma revisão historiográfica sobre o papel central da Semana na formação do Modernismo brasileiro. Desde as palavras de Mário de Andrade, um dos “cabeças” da corrente paulista de “atualização cultural”, reverbera um questionamento: o evento de 1922 deveria ser “exemplo” ou “lição”?

De fato, dos muitos nomes envolvidos nas “inovações estéticas” da Semana de 1922, nem todos podem ser vistos como modernistas hoje em dia. Alguns ainda vieram a ter obras famosas apenas nas décadas seguintes, passando a vida inteira sem conseguir viver da própria arte e literatura. Muitos deles nem sequer são reconhecidos na atualidade.

Aquela “carta de intenções”, entende-se hoje, poderia até não ter resultado em nada, dada a mistura de interesses e estilos difusos dos participantes e mentores. Estiveram presentes no evento Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Victor Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Luís Aranha, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Tácito de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Agenor Fernandes Barbosa, Guiomar Novaes, Zina Aita, entre outros. “Nem todos eram ‘modernistas’. No campo da música, por exemplo, tínhamos o vanguardista Villa-Lobos contrastando com Guiomar Novaes, uma grande intérprete de Chopin”, afirma o professor da UFPE.

Anco Márcio Tenório Vieira, jornalista e professor de Literatura, estuda e leciona sobre a década de 1920 no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, pesquisa a respeito do Congresso Regionalista de 1926, evento promovido pelo Centro Regionalista do Recife, que deu origem ao Regionalismo Nordestino da década de 1930 e teve figuras como Gilberto Freyre à sua frente Foto: Laboratório — Leitura & Crítica/Reprodução

Com muita diversidade e alcance limitado dos seus ideais, engana-se quem pensa que os “futuristas paulistas”, como eram chamados, transformaram a arte brasileira como um todo e de imediato. “Só vamos ter uma clareza daquele grupo no decorrer dos anos seguintes, inclusive no ponto de vista ideológico”, comenta Anco. Luís Augusto Fischer, também docente, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e pesquisador de História da Literatura, completa que “a Semana só desencadeou as carreiras de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Houve gente que os modernistas, depois, passaram a expurgar do seu cenário, como Cassiano Ricardo e Plínio Salgado”.

DAS ELITES, PARA AS ELITES: UMA VALORIZAÇÃO ADIADA 

Embora demonstrasse valentia contra os formatos estéticos do passado e incomodasse as elites financeira e intelectual paulistanas da época, a Semana de 1922 não pretendia, no fundo, romper com esses grupos. Tinha somente a intenção de “atualizá-los”. É o que afirma o professor Luís: “Foi basicamente uma coisa feita pelas elites e para as elites, através de jovens artistas e provincianos de São Paulo. Paulo Prado, intelectual sofisticado, estava diretamente interessado no debate. Ele era gestor da família Prado, uma das mais ricas daquele contexto”, conta. “O movimento tinha como alvo direto o que eles consideravam o suprassumo do reacionarismo: o Rio de Janeiro, mais especificamente, a Academia Brasileira de Letras e figuras como Olavo Bilac, já falecido na época, e Coelho Neto”. Vale lembrar que, nos anos 1920, a cidade do Rio de Janeiro era a capital do país e núcleo cultural de maior importância do Brasil.

Luís Augusto Fischer — professor e pesquisador da área da Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — está atualmente em processo de escrita de um livro sobre a história da consagração da Semana de Arte Moderna como “mito fundador” do Modernismo brasileiro. Também escreve regularmente para vários jornais de renome nacional, como Zero Hora e Folha de S. Paulo Foto: Flávio Dutra

“Se tinha um lugar pelo qual os artistas precisavam passar para serem consagrados no país inteiro era o Rio de Janeiro, porque era onde se concentravam as grandes editoras com distribuição nacional, os jornais mais lidos, os grandes críticos e a vida intelectual brasileira”, esclarece Anco. “Se Gilberto Freyre, de Pernambuco, não publicasse Casa-Grande & Senzala no Rio de Janeiro, ele não teria a grande repercussão que alcançou”. Foi o caso dos modernistas de 1922.

O professor Anco Vieira recorda o exemplo de Luís Aranha, que ingressou na carreira de diplomata e nunca mais escreveu um verso famoso. Tácito de Almeida morreu muito cedo e também foi praticamente esquecido. “Mário de Andrade, por outro lado, podia ser chamado de um ‘homem orquestra’. Ele não era só romancista, cronista e poeta. Também era etnólogo, musicólogo, fotógrafo, folclorista. Mário vai se meter em uma quantidade absurda de coisas e seu romance Macunaíma é um dos mais importantes das vanguardas dos anos 1920 e 1930 do mundo”.

Entretanto, nem Mário nem Oswald conseguiram, em vida, fazer com que suas obras fossem lidas por um grande público. “É bom lembrarmos que o Mário de Andrade e o Oswald de Andrade que participam da Semana de Arte Moderna, em 1922, ainda não são os mesmos Mário de Andrade de Macunaíma e Oswald de Andrade do Antropofagismo”, alega Anco. “Se eles não tivessem se tornado, décadas mais tarde, duas figuras incontornáveis na história da literatura brasileira do século XX, provavelmente a Semana hoje seria pouco valorizada. O sucesso dela tem muito a ver com o percurso que essas pessoas vão ter ao longo de suas vidas”.

Macunaíma foi publicado em 1928, numa edição de 800 exemplares, que levou nove anos para ser esgotada. A segunda tiragem, de 1937, levou mais seis anos para vender 1.000 exemplares. Sem mencionar que, segundo o professor da UFPE, as demais obras de Mário não tiveram reedições durante sua vida. Oswald também não teve nenhuma de suas obras reeditadas ou peças encenadas enquanto vivo. “O sociólogo Antonio Candido disse em uma entrevista que, quando ele visitava Oswald de Andrade, em sua casa, o que lhe chamava mais atenção era um cômodo entupido de livros publicados pelo autor, e que não haviam sido distribuídos. A editora não fazia distribuição nacional, como as do Rio, e ele ficava responsável por enviar cada exemplar pelo correio”.

Os jornais foram um grande meio de divulgação do pensamento modernista, mas não das obras. Com o alto índice de analfabetismo no Brasil no início do século XX, ficava difícil atingir um grande público. “Como Oswald e Mário iriam influenciar toda uma gama de artistas nacionais se eles não conseguiram ser lidos, a não ser por uma minoria? Apesar da qualidade, suas obras demoraram a ser conhecidas. Eram escritores escrevendo para outros escritores”, afirma Anco. De acordo com ele, ainda falta no Brasil um levantamento de como as ideias modernistas de vanguarda circularam.

Um último motivo para o alcance cultural limitado da Semana de 1922, apontado por Luís Fischer, da UFRGS, era o fato de o movimento se opor a algo considerado “superado” no Rio de Janeiro. “Eles não tinham interesse em romper com o Simbolismo. Naquele contexto, era um estilo poético muito mais interessante, muito mais futuroso, pelo que tinha de novidade, de subjetividade e experimentação formal. A briga foi com o Parnasianismo, que já não tinha mais tanta força, não era mais um movimento levado muito a sério”. Apenas na década seguinte, a sintaxe modernista foi difundida para além das elites.

Na definição do professor Luís, o Moderno no Brasil começa com Machado de Assis, por volta de 1870, bem anterior à Semana. “Naquela época, Machado já tinha lido Edgar Allan Poe e Baudelaire”. O Modernismo ou “Moderno de Vanguarda” teria, então, surgido a partir de um conjunto de outras referências modernas, não sendo algo ligado apenas ao evento em São Paulo.

O lituano Lasar Segall foi um dos pioneiros a expor obras expressionistas no Brasil, tendo organizado mostras individuais no Estado de São Paulo em 1913. Segall teria chegado no país por volta de 1912 para visitar membros de sua família que aqui moravam. Entre os temas que mais pintava estavam guerras e o sofrimento humano. Na imagem, seu quadro Família Enferma (1920)

“Repare que o nome do movimento era ‘Semana de Arte Moderna’, não ‘Semana de Arte Modernista’. O termo modernismo surgiu depois”, afirma Anco. “Eles próprios evocam a ideia de ‘modernidade’. E modernas já eram a literatura de Lima Barreto, de Monteiro Lobato e as pinturas de Vicente do Rego Monteiro. O próprio Romantismo já era moderno, uma vez que estabelece uma série de inovações no campo da arte, no século XIX”.

Segundo os professores de literatura, é difícil definir datas de início e fim de movimentos artísticos. “A impressão que temos na leitura escolar é a de que houve períodos nítidos, com datas demarcadas. Essa nitidez não existe, muito menos no momento em que as coisas estão acontecendo”, esclarece Luís. “Fora de São Paulo, nos anos 1890 e 1900, houve pessoas propondo coisas novas, debochadas, engraçadas, que arguem a centralidade das formas tradicionais, na Padaria Espiritual, no Ceará; no Rio Grande do Sul, existiu uma geração de escritores que começa a ser publicada pela editora Globo; em Minas, um cosmopolitismo em Belo Horizonte e Cataguazes; e em Pernambuco, teve o Manifesto Regionalista e a figura proeminente de Gilberto Freyre. Esse arco de vanguarda dura até a Geração de 30”.

É claro que, enquanto estiveram vivos, Mário de Andrade e Oswald de Andrade continuaram escrevendo livros modernistas. Da mesma forma, Manuel Bandeira, cujo poema Os Sapos — declamado durante a Semana de 1922 por Ronald de Carvalho, na ausência do autor — gerou forte protesto no evento e se tornou um dos textos mais famosos do modernismo, também não parou de fazer poesias. Aos 50 anos, porém, ele também ainda não tinha publicado nenhum livro autoral em uma editora comercial.

Diferentemente dos paulistas de 1922, que tiveram sucesso tardio, os romancistas da chamada Geração de 30, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Érico Veríssimo e Rachel de Queiroz, bem como os poetas Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes e Jorge de Lima, chegaram com facilidade ao leitor comum.

“Os romances regionalistas de 1930 foram um sucesso de vendas e apresentaram os Brasis aos brasileiros. As obras eram distribuídas no país inteiro. É por meio delas que a parcela fora das elites toma contato com a literatura moderna. Esses escritores começam a viver do dinheiro que vem daquilo que eles escrevem. Há, assim, uma mudança na sensibilidade da linguagem literária do Brasil”, enfatiza Anco.

Contraditoriamente, foi também a partir de 1930 que se iniciou a ordenação do modernismo paulista como marco inaugural dos movimentos modernistas brasileiros.

Atualmente em processo de escrita de um livro sobre a história da consagração do Modernismo paulista sobre o conjunto da crítica literária e da história da literatura no Brasil, Luís explica que a trajetória de sucesso da Semana de 1922 está diretamente atrelada com a economia.

Nos anos 1920, a convivência de alguns modernistas com as grandes famílias de São Paulo, como os Prado, Amaral e Penteado, ajudou a angariar patrocínios para as obras de arte. “Mário de Andrade, exemplo disso, era um cara de classe média, mas que fora muito bem acolhido pelas elites econômicas”. Desse tempo em diante, o poder e a influência de São Paulo não pararam de crescer.

Em 1934, com a fundação da Universidade de São Paulo (USP), então uma instituição moderna de grande alcance, segundo Fischer, a cidade começa a “importar cérebros” de outras regiões do país e do exterior. Um ano depois, em 1935, Mário de Andrade assumia a chefia do Departamento de Cultura e Recreação da municipalidade de São Paulo. “Com modernistas em cargos de poder, criaram-se condições para a entronização da visão modernista paulista sobre o conjunto da brasileira”, explica.

A partir de 1937, o Estado Novo “compra” o projeto modernista, cooptando diversos artistas da Semana de Arte Moderna para a estrutura estatal. Este foi um “caso raro”, segundo Anco, da UFPE. “Enquanto o Nazismo, na Alemanha, excluía ideias de vanguarda, queimando livros e obras de arte consideradas ‘degeneradas’, aqui os próprios prédios públicos começam a ser feitos em arquitetura modernista”. Na vizinha Argentina, dos anos 1940 e 1950, durante o Peronismo, os prédios públicos ainda eram feitos em estilo neoclássico. “As obras modernistas começam a ficar conhecidas porque influenciam a criação de políticas públicas no Brasil e a construção de um pensamento sobre a identidade nacional”, afirma.

Segundo Luís, nos anos 1940, Mário protagonizou um movimento que dizia que o sucesso da Geração de 30 dependeu da Semana de Arte Moderna. Graciliano Ramos, o importante escritor alagoano, negava isso vivamente. Mas essa crítica foi sendo consolidada com o tempo, por meio de agentes intelectuais importantes como Sérgio Buarque de Hollanda e Antonio Candido.

Na década de 1960, o modernismo passou a ser incluído nos livros didáticos; enquanto na década de 1970, com a criação dos cursos de Pós-Graduação na USP e na Universidade de Campinas (Unicamp), foram feitas releituras do passado brasileiro na área de história, literatura, cultura e sociologia. Mário de Andrade passa, então, a ser retratado como uma figura heroica e visionária, conforme o professor da UFRGS.

“O movimento provinciano foi alargando o seu escopo à medida que o Rio de Janeiro perdeu força econômica, deixando de ser capital em 1960”, explica Luís Fischer, cujo livro sobre a temática deve ser lançado entre os meses de maio e junho de 2022. “Os escritores paulistas são celebrados e ‘santificados’ pelo trabalho crítico da USP e pela força histórica que São Paulo teve a partir daí”, incluindo com o crescimento da indústria automobilística e da imprensa paulistas.

Anco Vieira questiona o fenômeno. “De uma hora para outra, parece que todo o protagonismo do Brasil se dá em São Paulo. As demais regiões do país viraram secundárias”. De acordo com ele, a verdade é que nenhum modernismo brasileiro de outras regiões precisou de São Paulo ou do Rio de Janeiro para acontecer. “A guinada na literatura brasileira não foi só em território paulistano, mas no Brasil inteiro. E não necessariamente por causa dos paulistas”.

Esse “mito” criado em torno da dependência do modernismo paulista é o que os pesquisadores chamam de “paulistocentrismo”. E uma das possíveis causas para o surgimento dele, além das apontadas, foi a necessidade paulista de criar um legado cultural para chamar de seu.

“O Estado de São Paulo não tinha muito o que oferecer, em termos de arte, nos primeiros três séculos de civilização brasileira. A cidade de São Paulo era uma pequena vila no período colonial. Nesse sentido, a Semana de Arte Moderna veio a calhar”, afirma Vieira.

Se o evento de 1922 tivesse acontecido no Piauí ou em Goiás, ele teria o mesmo peso que tem hoje? Se fosse um movimento de origem nas classes mais baixas teria sido consagrado? E se a grande maioria dos seus líderes fosse formada por pessoas negras e do gênero feminino?

Em entrevista ao podcast O Assunto, do G1, Luiz Armando Bagolin — professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP) — atribui a Emma Voss o mérito de artista que traz pela primeira vez ao Brasil uma arte semelhante ao Expressionismo Alemão. Voss teria chegado em terras brasileiras, vinda da Alemanha, no ano de 1910, sendo a primeira a abrir uma exposição individual em São Paulo. Não se sabe muito de suas obras, mas se estranha o comportamento feminino fora do habitual para a época (artistas mulheres não eram muito comuns no início do século XX, por conta do machismo). Na imagem, seu autorretrato

Além do paulistocentrismo, muitos são os debates em torno dos recortes identitários da Semana de 1922. Alguns pesquisadores caracterizam a valorização das elites brancas paulistanas, na construção historiográfica do movimento, como eruditismo. Ou seja, uma exaltação do modo de pensar de um grupo privilegiado, com mais acesso à educação, que desconsidera a qualidade da produção cultural de classes econômicas mais baixas.

Outros destacam uma possível modernistolatria. “Por vezes, o modernismo de vanguarda, da Semana de 1922 e seus desdobramentos imediatos, é visto como se isso fosse a ‘revolução das revoluções’. Como se, sem ele, a literatura brasileira estaria ‘pastando’ até hoje, fazendo coisas do século XIX. Isso não é verdade!”, argumenta Luís. “É uma maneira equivocada de ver as coisas, como se tudo de bom que veio depois da década de 1920 fosse mérito dos paulistas”.

O pesquisador da UFRGS continua: “Precisamos entender que, quando se fala em Modernismo, estamos nos referindo a três coisas diferentes. Uma é o evento de 1922, que é uma coisa pequena, secundária, restrita a São Paulo e que não dá fama pra ninguém. A segunda, é a carreira posterior desses artistas que acabaram vendo suas obras se tornarem mais relevantes. A terceira coisa é saber como a crítica literária e a história da arte, protagonizadas pela USP, influíram na releitura do passado. É apenas nesse terceiro momento que a Semana de 1922 se torna um mito fundador da beleza e da inteligência”.

Mas seria desonesto simplesmente ignorar a importância estética da Semana de Arte Moderna e seu papel na virada de sensibilidade da cultura brasileira. A mudança estava, sim, em andamento e não aconteceu de uma hora para outra, ao contrário do que os registros oficiais costumam indicar. A “guinada” paulista nas artes brasileiras era apenas um projeto, em 1922, que começa a se fundamentar somente nos anos 1930. Contudo, a herança deixada nos museus pelos “futuristas de São Paulo” está aí para provar o quão forte foi o potencial daquele movimento.

“O grande problema da Semana de Arte Moderna é que ela passou a ser colocada como se fosse um ‘Modernismo com M maiúsculo’. E os demais movimentos modernistas que ocorreram no decorrer dos anos 1920 no Brasil — em Pernambuco, na Bahia, no Ceará, no Amazonas, no Rio Grande do Sul etc. — colocados como se fossem ‘um modernismo com M minúsculo’, avalia Anco Vieira. “Seria muito estranho se um país nas dimensões continentais do Brasil, com tanta diversidade, tivesse apenas um movimento para influenciar, como um farol, todos os demais modernismos surgidos nos anos 1920”.

Para explicar melhor seu ponto de vista, o professor Anco trouxe esse discurso para uma linguagem mais atual. “É como se a Semana de 1922 fosse um ‘Modernismo Raiz’ e todo o resto um Modernismo Nutella’”, defende. “Na Europa, os historiadores não elegeram uma vanguarda específica, por exemplo, o Cubismo, como único movimento modernista de fato ocorrido no continente, ignorando daí a relevância do Dadaísmo, do Futurismo, do Surrealismo, do Expressionismo etc. Foi isso, mais ou mesmo, o que aconteceu no Brasil”.

Pintor, desenhista, muralista, escultor e poeta pernambucano de renome internacional, Vicente do Rego Monteiro expôs algumas obras em São Paulo, no ano de 1920. Sendo conhecido pelos articuladores modernistas da cidade, foi convidado para enviar oito pinturas suas para a Semana de 1922. Ele e seu irmão, Joaquim, foram uns dos únicos artistas de fora do Sudeste apresentados mo evento, segundo o professor Anco Vieira (UFPE). Em 1930, Vicente organizou a primeira mostra internacional de Arte Moderna no Brasil, trazendo para cá quadros de Picasso, Miró e outros grandes nomes europeus. Na imagem, a obra Menino Nu e Tartaruga (1923)

Já havia pessoas espalhadas pelo país que faziam seus modernismos. E depois da Semana de 1922 desabrochar em São Paulo, outros modernismos continuaram a surgir por si próprios. Por volta de 1945, uma terceira geração modernista, o “Pós-Modernismo”, ascende com o fim da Era Vargas e as transformações socioculturais da época. Nos anos 1950, o projeto ufanista e desenvolvimentista de uma nova capital deu origem a Brasília, considerada uma obra-prima do planejamento urbano e da arquitetura moderna. Na década de 1960, o Cinema Novo e o Tropicalismo ganharam holofotes com suas críticas às desigualdades sociais e à instabilidade política no país. E nos anos 1970, influenciada pela sintaxe modernista da Geração de 30, a Poesia Mimeógrafo enfrentou a censura da Ditadura Militar. Cada corrente, com seu próprio estilo, fazia experimentações estéticas à sua maneira. Mas todas possuíam, em comum, um desejo de melhorar suas realidades através da arte.

A construção de Brasília, projetada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, foi um dos grandes marcos da arquitetura e do urbanismo modernista brasileiros. Fundada na década de 1960, é considerada pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade desde 1987

EXEMPLO OU LIÇÃO? 

No Brasil de 1922, uma semana de exposições propunha uma ruptura brusca com as tradições parnasianas e academicistas, influenciada por vanguardas artísticas europeias. Seus integrantes almejavam uma arte com mais liberdade, brasilidade e proximidade com o cotidiano. Na música, misturavam melodias folclóricas e ritmos populares. Nas artes plásticas, tentavam fazer um retrato do povo e das paisagens brasileiras. E, na literatura, exercitavam as marcas da oralidade e da coloquialidade.

Anita Malfatti, uma das poucas artistas mulheres que receberam destaque nos registros históricos do Modernismo brasileiro, nasceu com uma deficiência congênita no braço direito, tendo aprendido a escrever e desenhar apenas com o braço esquerdo. É considerada a grande pioneira da Arte Moderna no Brasil. Fez sua primeira exposição individual no país em 1914 e esteve à frente da Semana de 1922. Seus quadros foram duramente criticados por décadas. Na imagem, seu quadro A Estudante (1916)

No Brasil de 1942, Mário de Andrade, o “homem orquestra”, fez um balanço negativo do movimento que ajudara a construir. Em uma conferência, no Rio de Janeiro, disse que o modernismo paulista não deveria servir de exemplo para ninguém, mas talvez pudesse servir de lição. Para ele, uma arte moderna só teria sucesso se, junto com ela, o país também se modernizasse. As tentativas deles de melhorar a realidade brasileira através da arte não foram suficientes para combater a desigualdade.

No Brasil de 2022, permanece o legado de que nem toda pintura deve ser fotografia, nem toda poesia precisa rimar e nem toda música precisa ser formal. A maior contribuição do modernismo para a atualidade talvez seja o olhar para o futuro, o ideal de valorização da cultura e da história, bem como a consideração de que cada diferença merece ser lembrada e respeitada.

>> Quer saber mais sobre a Semana de Arte Moderna? Clique aqui e entenda a história do movimento.

Reportagem de Lucas Ortiz, originalmente publicada no Zero, Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC, sob a orientação dos professores Ildo Golfetto e Valentina Nunes

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