História,  Jornalismo

O nome atrás do espelho

Francisco Eleutério de Sousa, o pouco conhecido editor da publicação em que despontou o jovem Machado de Assis

Por Cristiane Garcia Teixeira

Entre as tarefas, compromissos e responsabilidades que completam o ofício do historiador e historiadora, “levantar véus” que encobrem áreas amplas da experiência social do passado é uma delas. E, como escreveu Sidney Chalhoub, não é tarefa fácil descobrir os modos e os motivos que levaram ao silenciamento e a invisibilidade de sujeitos sociais e, muitas vezes, de sociedades inteiras. Diante desse desafio, fazemos uso dos “talvez” e “pode ser” que dispomos quando a documentação é insuficiente, sempre entremeado ao rigor da construção do conhecimento histórico e da realidade experimentada. Foi esse o caminho que trilhei para tornar possível o esboço da trajetória individual do, ainda pouco conhecido, poeta, estudante de medicina, proprietário, diretor e redator chefe da revista O Espelho, que circulou no Rio de Janeiro entre setembro de 1859 e janeiro de 1860.

Já em 1855, esse mesmo poeta versava na imprensa carioca:

Meu Deus, eu peço pouco, sim, concede
Um estro de Poeta... um pensamento
Com que possa arrancar o meu destino
Desse livro fatal do esquecimento!

Foi também esse pedido do não esquecimento, feito há mais de um século, que me fez investigar o que aconteceu com o poeta promissor que veio a “desaparecer” depois que sua revista também parou de circular. Embora tenha ressurgido na imprensa, depois de 1860, como Oficial de Descarga da Alfandega do Rio de Janeiro, a poesia e o poeta se perderam. Portanto, apresento o capítulo Francisco Eleutério de Sousa: um “Director e Redactor em Chefe” na imprensa do Rio de Janeiro oitocentista (1850-1868), que junto com outros nove capítulos completa o livro Mediações e Mediadores Culturais: escritores, artistas e divulgadores, publicado pela editora Casa Aberta, de Itajaí, SC, neste desafiador ano de 2021. Foi organizado pelas historiadoras Karine Lima da Costa; Maria de Fátima Fontes Piazza e Talita Sauer Medeiros e é fruto dos encontros e debates que aconteciam no Laboratório de História e Arte – LabHarte – do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina.

Desde que me deparei com a revista de literatura, modas, indústria e artes, de título O Espelho, uma série de questões me tomou, guiando meu trabalho, e muitas delas, como não poderia ser diferente, estavam ligadas ao criador e proprietário do empreendimento: Francisco Eleutério de Sousa.

Ele foi um mediador que dedicou tempo e esforços em um projeto político-cultural que invocou para a arte, em geral, um apelo democrático e igualitário.

Veja bem: Eleutério foi autor de livro de poesias, colaborador em diversos impressos que circularam na corte na década de 1850, gozou de prestígio ao ser agraciado com o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa, pelo imperador Pedro II, e de ser censor do Conservatório Dramático Brasileiro, órgão oficial da censura teatral da corte. Foi diretor e redator chefe da revista que teve como principal colaborador o jovem Machado de Assis e que funcionou como “divisora de águas” na carreira literária e jornalística do nosso Bruxo do Cosme Velho. No entanto, Eleutério de Sousa teve um fim trágico que só foi descoberto quando analisado um Caderno de Registros de Ordens encontrado no acampamento de Cumbariti, no Paraguai, em 1868.

Capa e página inicial da edição número 1 da revista O Espelho, de 4 de setembro de 1859

Parte da trajetória de Francisco Eleutério de Sousa está encoberta por véus ainda instransponíveis, contudo pode-se concluir que ele foi um mediador que dedicou tempo e esforços em um projeto político-cultural que invocou para a arte, em geral, um apelo democrático e igualitário. Tudo isso expresso em seus escritos e em sua revista que foi também um espelho da literatura nacional de meados do século XIX. Eleutério foi um sujeito que se voltou para a produção de bens e práticas culturais, bem como para a difusão desses bens para públicos mais variados, pois acreditava que era possível a democratização do conhecimento científico e artístico. Uma discussão que se estende até nossos dias.

Além de Francisco Eleutério de Sousa, convido o leitor e leitora a conhecer mediadores como tradutores, intelectuais engajados, diplomatas, bibliotecas, livreiros, desenhistas de histórias em quadrinhos, artistas visuais, museus, jornais. Podendo, assim, encontrar um vasto panorama do campo das mediações culturais em tempos e espaços variados. Para quem quiser aventurar-se nas páginas de Mediações e Mediadores Culturais: escritores, artistas e divulgadores, é possível ter acesso ao e-book do livro no perfil da editora Casa Aberta na plataforma Issuu. Mas aquelas pessoas que ainda não abrem mão das obras em papel podem adquirir o exemplar impresso, no valor de 40 reais, através de formulário preenchido no Google Docs.

Referência

COSTA, Karine Lima da et al (org.). Mediações e Mediadores Culturais: escritores, artistas e divulgadores. Itajaí, SC: Casa Aberta, 2021. 214 p.

VEJA TAMBÉM

Foi na publicação de Francisco Eleutério de Sousa que a autora deste artigo fez um grande achado histórico: a produção de uma biografia de D. Pedro II pelo jovem Machado de Assis, então com 20 anos. Confira uma entrevista da historiadora Cristiane Garcia Teixeira ao Jornalismo & História sobre essa valiosa descoberta aqui. E as edições da revista O Espelho podem ser visualizadas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Mais de duas décadas depois de surgir como o principal colaborador da revista O Espelho, Machado de Assis tomou emprestado o título da publicação para produzir um conto de profundas filosóficas, divulgado inicialmente no jornal Gazeta de Notícias, também do Rio de Janeiro, em 8  de setembro de 1882. O Espelho, esboço de uma nova teoria da alma humana integrou a antologia Papéis Avulsos, publicada naquele mesmo ano pela Lombaerts & Cia, do RJ, e depois fez parte de outras coletâneas de obras do autor. A mais recente, intitulada O Espelho e outros contos machadianos, de 2019, foi editada pela Scipione, de São Paulo.

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