História,  Jornalismo,  Resenha

A prosa que terminou em verso

Encontro virtual para celebrar os 119 anos de Os Sertões reafirma a importância da clássica obra de Euclides da Cunha para a compreensão das disparidades históricas do nosso imenso país

Por Mauro César Silveira

Nem as pedras tecnológicas do caminho – microfonia e travamentos na transmissão – comprometeram uma reunião virtual tão envolvente: a live que celebrou os 119 anos do livro Os Sertões, quinta-feira da semana passada, no canal no YouTube da Casa de Cultura Euclides da Cunha. No início da noite do dia 2 de dezembro, o encontro de ex-maratonistas intelectuais da Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo (SP), sob a estimulante condução de Ana Paula Lacerda, curadora da Casa de Cultura Euclides da Cunha, e da cativante professora Maria Aparecida Granado Rodrigues, a Cidinha, mostrou que a simplicidade pode ir longe. Assumido bate-papo, a conversa iluminou mais do que muita palestra empolada, pedante, narcisística, dentro e fora das instituições acadêmicas. A naturalidade das pessoas permitiu que a dimensão e a importância dessa clássica obra emergissem com vigor. As reminiscências de experiências vividas na Semana Euclidiana desde a infância e seus reflexos em trajetórias profissionais bem distintas umas das outras evidenciaram a riqueza do trabalho de Euclides da Cunha para a compreensão do passado e do presente do Brasil, com sua desafiadora e ainda inabalável desigualdade social.

Diversidade grande, aprendizado comum. Muita consciência social adquirida no contato com Os Sertões aflorou em cada depoimento. Sofia Ratz, da área de Biologia, hoje Doutora no Ensino de Ciências, destacou que o jornalista e escritor “pôs o nome de Canudos para o mundo”, denunciando o massacre de milhares de sertanejos. Um corajoso relato que hoje inspira sua atuação profissional. O acadêmico de Medicina Lauro Mazzeo admitiu que quando começou a ler a celebrada obra ficou um “pouco decepcionado”, depois de ouvir tantos elogios ao livro. Mas foi sendo conquistado a cada linha, a cada página, até render-se à terceira parte, A luta, fundamental para “encarar os nossos Brasis”. A jornalista Bárbara Dal Fabbro, da Secretaria de Cultura de Ribeirão Preto, revelou que descobriu sua futura profissão numa das primeiras participações na Semana Euclidiana, aos 13 anos, ao se deparar com o meticuloso trabalho de reportagem do autor, magnífico como o valor literário da sua escrita. Um lado jornalístico que lhe tocou fundo, tomando sorvete com o grande intelectual pernambucano Cyl Gallindo, saudoso professor do Ciclo de Estudos Euclidianos. O advogado Rubens Lobato Pinheiro falou sobre a influência de Euclides da Cunha na sua área, ressaltando a “vertente jurídica” de Os Sertões.

“Livro de coragem e arte, permeado de beleza e horror”. Professora Maria Aparecida Granado Rodrigues, a Cidinha

O evento ainda protagonizou o momento sempre muito aguardado desde que a maratona intelectual da Semana Euclidiana foi criada em 1940: a divulgação das suas vencedoras e dos seus vencedores. A revelação dos nomes agraciados da edição de 2021, realizada entre 9 e 15 de agosto, surpreendeu uma das participantes da live, Bárbara Dal Fabbro, que recebeu a notícia da sua premiação ao vivo. Ela conquistou, pelo segundo ano consecutivo, a categoria Universitários/Pesquisadores/Professores, com o artigo intitulado Escritos de Euclides: atravessemo-los!, publicado hoje pelo Jornalismo & História. Sua emoção ficou pouco tempo estampada no YouTube. Logo após o anúncio, problemas técnicos desconectaram a jornalista da transmissão. Dal Fabbro ganhou essa modalidade ao lado de Beatriz Carrer Teixeira, da Université Paris 8, a outra vencedora em primeiro lugar.

Também antes que a live atingisse sua uma hora e 14 minutos de duração, a coordenadora da mesa virtual, Ana Paula Lacerda, pediu que cada um dos convidados oferecesse uma palavra-chave da obra euclidiana. Denúncia foi a escolhida por Sofia. Sensibilidade, a de Lauro. Bárbara optou por apuração, realçando o rigoroso método do repórter Euclides da Cunha, atributo cada vez mais imprescindível neste mundo atordoado pelas fake news. Rubens reuniu, com sabedoria, as palavras anteriores num sintético “tudo o que vocês disseram”. A instigante prosa ainda teve um requintado final em verso: a professora Cidinha leu, com entusiasmo, o poema que escreveu especialmente para a data. “Livro de denúncia, de coragem e arte/ Permeado de beleza e de horror/ Desmascarou o engano cruel/ O aniquilamento de Canudos eternizado no papel”, proclama uma das estrofes. Foi uma bela homenagem ao livro que a pequena São José do Rio Pardo abraça, com ternura, todos os anos, há mais de um século, quando surgiu o movimento euclidiano na cidade. Noite animadora em tempos sombrios.

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Esta produção da Casa de Cultura Euclides da Cunha, de São José do Rio Pardo (SP), aborda o legado do autor de Os Sertões para a cidade e o Brasil:

Sinopse: Um paralelo entre a vida do engenheiro, jornalista e escritor Euclides da Cunha e as origens de São José do Rio Pardo, uma cidade no interior do Estado de São Paulo, onde, no final do século XIX, Euclides tem a missão de reconstruir a ponte metálica sobre o Rio Pardo. O encontro entre Euclides e São José culminou no nascimento do livro Os Sertões, uma das principais obras da literatura e da historiografia brasileira, que projetou o escritor e, consequentemente, a cidade, para o mundo. Desde 1912, este legado tem sido eternizado, ano após ano, por meio do Movimento Euclidiano e da Semana Euclidiana, um dos maiores movimentos em memória de um escritor no Brasil.

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